A Realidade não pode ser possuída

A Realidade não pode ser possuída

O grande problema da arte, na minha opinião, sempre foi a tentativa de se estabelecer uma relação total com a Realidade. Toda arte é sempre representação e não é possível jamais escapar dessa limitação inexorável. Em grande parte, a criatividade da arte se deve a essa limitação: não podendo representar o Absoluto nós estamos eternamente encontrando aproximações.

É relativamente simples explicar a razão pela qual a arte pode ser apenas a representação da realidade e não a Realidade em si. A realidade é o todo, a unidade do todo. Embora uma obra possa apontar esse todo uno, enquanto coisa física ela é limitada, não é o todo. Ela é o mapa e não o território. Isso está de acordo com a natureza mesma da realidade: real é aquilo que é único, que não pode ser copiado, representado ou descrito. Existe uma qualidade na realidade, que é sua própria essência, que só pode existir nela mesma.

Não é possível, por isso, explicar o jeito correto de alcançá-la ou de enxergá-la. Se houvesse algum método para poder se perceber essa essência última, isso estaria significando que existe uma maneira de se causar a realidade. Como a realidade existe em si e não tem causa, então também não pode existir nenhuma explicação que seja capaz de revelar sua essência. Ou seja, a realidade não pode percebida atravez da lógica.

Mesmo a minha vontade de me libertar da lógica não vai resolver esse problema: a vontade de escapar da lógica já esta presa à lógica ao se justicar como uma ação que é coerente em virtude do resultado que se projeta alcançar. Abandonar a lógica é lógico por que isso significa alguma forma de ganho, como por exemplo o poder de se ter a percepção da realidade, que pode trazer inconscientemente uma forma sutil de vaidade, travestida em um nobre desejo pelo conhecimento da verdade. Quando existe um motivo para se alcançar a realidade ela não é alcançada. A realidade existe em si, sem motivo, sem um fim. Ter um motivo para alcançá-la é querer atingir uma finalidade e não aquilo que existe em si. É ser contraditório à natureza do real. De modo que perceber diretamente a realidade não pode depender de minha vontade, já que aquilo que ela é, em seu sentido mais universal, está acima de qualquer coisa particular, individual. Qualquer vontade de se encontrar a realidade já é falsa desde o início. Aquilo que deve criar a vontade de relação direta com a realidade só existe nela mesma, não é diferente dela. Se ela é seu próprio fim, a razão para essa vontade existir só pode estar nela, e não fora dela. Como então posso estar sendo sincero ao querer encontrar a realidade, se nem conheço a verdadeira razão pela qual deveria buscá-la?

Se não estou na realidade então aquilo que chamo de desejo pela realidade não é o verdadeiro desejo pela realidade, mas sim por outra coisa. O verdadeiro desejo pela realidade não pode ser chamado de desejo: ao ser necessariamente um impulso absolutamente desprovido de interesse, já é a percepção direta da realidade. Essa ausência de interesse, de finalidade, que está de acordo com a natureza da realidade, sendo por isso mesmo una com ela, jamais pode ser resultado da vontade pessoal, da intenção, jamais pode ser projetada.

O desinteresse, e a honestidade inerente à ação dele decorrente, não podem ser coisas calculadas. Não pode existir a intenção de se ser honesto. Quando essa intenção existe é por que não se é honesto a priori e, por algum motivo ou finalidade vantajosa, esta se tentando ser. A desonestidade não pode nunca projetar a honestidade sem ser desonesta. O desinteresse é algo espontâneo, que surge sem explicação.

Não existe como se atingir voluntariamente a espontaneidade: qualquer tentativa de se ser natural jamais vai ser espontânea. Sempre vai ser o resultado de uma ação que foi previamente projetada, sempre vai ser uma tentativa, algo premeditado. E depois: se eu não sou espontâneo que motivo me leva a querer ser? É a espontaneidade em si ou alguma forma de melhora em mim mesmo? Se eu quero obter alguma vantagem da espontaneidade então não estou sendo honesto. Não sendo honesto já não sou espontâneo, obviamente. É um círculo vicioso. Se sou honesto e admito, então, que estou interessado em alguma melhora pessoal, isso significa que pretendo adquirir o dom da espontaneidade. O problema é que esse dom não pode ser adquirido, não é uma posse. Participar daquilo que é o universal implica em abandonar a ideia de posse e partilhar o todo com o todo. O espontâneo é a qualidade em si da realidade e não pode ser alcançado, compreendido ou revelado por palavras ou métodos. Ele não pode ser possuído, é como o sol ou a água.

Ser espontâneo é estar se partilhando com o todo, e essa relação implica o fim da individualidade e de toda forma de posse. É através da posse que eu me percebo uma entidade isolada, completamente individual. Com a posse eu tenho a percepção de estar existindo sozinho na minha relação com aquilo que me pertence, já que ao não estar dividindo nada, ou quase nada, eu deixo de compartilhar não apenas aquilo que é minha propriedade: eu mesmo não me compartilho. Desse modo eu posso possuir um “eu”, um ego.

Isso significa que o egoísmo está na base da necessidade de individualismo. Ora, toda a ação proveniente desse egoísmo, lógica ou não, vai ter como finalidade única alguma vantagem para o ego e não para o todo, para o particular e não para o universal.

De modo que a tentativa do ego de alcançar a realidade vai ser sempre frustrada, já que tudo que ele faz tem um fim nele mesmo. Que razão pode justificar alguém abdicar de sua própria vida, de seu ego? Que vantagem pode ter isso? A percepção dessa razão é a descoberta instantânea da realidade. Não existe aqui uma percepção que é o resultado de um acúmulo de conhecimentos, isso não vem do conhecimento ou de qualquer outra tentativa.

Não existe recompensa nem a quem recompensar. Uma virtude e beleza brotam do coração sem explicação, como algo muito maior do que um milagre, que não vem para impressionar, nem é o impossível, mas que contém a semente da purificação total. Sem perceber isso como alguém pode se encontrar perdido fazendo aquilo que realmente quer fazer? Por que só faz arte aquele que faz o que gosta, de coração. Quem não sabe do que gosta e quer inventar em si a imitação do gostar tem outras razões para fazer arte que são diferentes da arte. O gostar é espontâneo.

Roger Barnabé

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