NA MARGEM DA MODERNIDADE ARCAICA, coletivo banzo

NA MARGEM DA MODERNIDADE ARCAICA

por COLETIVO BANZO
fotografia andarilha marginal “Banzo” é a dor do exílio, a tristeza do homem escravizado, distante de sua terra, do viajante desgarrado perdido nos sertões do mundo inteiro. É a melancolia moderna que contamina, mas que move. Caminhos.

BANZO almeja o espaço público, para além da arte de vitrines, do espaço restrito, do privado que segrega; problematiza o papel dos espaços  expositivos, questiona sua função hierarquizante que mensura ($) a arte – régua pautada na mercantilização contemporânea da vida, em que quase
nada escapa das classificações arbitrárias que ditam as narrativas cuja valorização é ou não permitida.

Questão fundamental ao artista contemporâneo: desmistificar os discursos e práticas padronizadas que limitam o espaço da perspectiva crítica, reduzindo-a somente à suposta crítica moderada ou abstrata que não interfere nas estruturas senhoriais – que não transcende o socialmente tolerável do ponto de vista da casa-grande.

Arte domesticada: pretensamente crítica, mas que acaba por reforçar contraditoriamente a ideologia liberal-meritocrática em sua falsa igualdade de oportunidades discursivas (especialmente oportunas àqueles mais iguais que os outros).
[Nota– Mérito: s.m. i) qualidade superior daquele que herdou os benefícios dos crimes, canalhices, espertezas e espoliações, via de regra cometidos “legalmente” por seus pais e avós; ii) valor moral e intelectual que é qualidade própria e intrínseca daquele que conquistou matrimônio patrimônio
por sobre um polpudo herdeiro (vide: golpe do baú; bom casamento; temer) ].

BANZO quer a fotografia que não se pauta pela restrição criativa da arte-de-mercado, das galerias reprodutoras de celebridades e de suas estruturas viciadas; a fotografia que trai a pretensão carreirista das figurinhas carimbadas; que denuncia o culto individualista pai-mecenas, a “pura arte” – o pseudo-virtuosismo gourmet que paira acima dos problemas abjetos do mundo.

O desalento da barbárie move – obstáculo que anima. BANZO recusa os limites da feira e suas regras que tolhem o artista; em busca de liberdade criativa, busca dar expressão ao que ainda é silêncio – desmistificar as intenções da fina-arte blasé que confortavelmente se ausenta da História.
Fotografia de práxis – corre por fora, come pelas bordas, cospe na falácia da arte pela arte e conspira contra o renome de butique.

[Coletivo Banzo, 2015/2017]

BANZO do fim de feira

No início dos anos 1990, a sociedade brasileira voltava a fervilhar; as ruas do país voltavam a ter como seu legítimo protagonista o povo, após o baque sofrido pelos movimentos sociais, quando a patronal collorida de verde-e-amarelo, respaldada pela imprensa-empresa (porta-voz da ignorância nacional), arrebanharam patos suficientes para levar mais um pilantra ao poder – tradição aliás sempre renovada em nossa semi-nação.

Por esta época, três jovens fotógrafos de rua, oriundos de São Paulo, já percorriam os rincões do território brasileiro, mais tarde do mundo, registrando a diversidade cultural, manifestações sociais, paisagens cotidianas – cenas da realidade latente que exige ser ouvida. Davam assim início a seus trabalhos de escuta das contradições latentes – das quebradas sociais –, numa época em que insistentemente a chamada modernidade (por vezes disfarçada com inofensivos adornos pós-modernos) ainda se constitui de tanta barbárie potencialmente superável: modernidade arcaica.

A partir de encontros regulares, começados em 2013, firma-se a união desses artistas de diferentes matizes, cuja sintonia criativa e de pontos-de-vista os conectam em torno de um projeto comum: o registro dos sentimentos das margens, a busca dos limites a serem subvertidos.

O diverso e amplo acervo então reunido, é revisitado – mesclado e reconfigurado em tríades fotográficas –, em um projeto curatorial cujo propósito é tornar pública uma obra construída no meio público, recontextualizando imagens das margens de outrora, vergonhosamente atuais.

Atento ao subalterno – ao invisibilizado que teima em sobreviver e incomodar –, BANZO se caracteriza por sua fotografia de rua, por sua arte comum, oferecendo hoje duas intensas décadas de olhares e estradas à memória foto-histórica crítica do arcaico Brasil contemporâneo.

[Coletivo Banzo, 2015]

Curadoria da Exposição “TEMPO”

O presente conjunto intitulado “Tempo” – ora apresentado sob a forma de tríades fotográficas expostas em espaço público através de lambe-lambes – se constituiu a partir de três temas que se entrelaçam e complementam, segundo reflexão centrada no conceito da temporalidade: infância – o futuro presente (Marcelo Min); texturas do tempo (Paulo Cesar Lima); e solidão – tempo de silêncio (Yuri Martins Fontes).

No processo de curadoria colaborativa de “Tempo”, os membros de BANZO contaram com a participação do professor e crítico Rubens Zaccharias Jr., autor da Nota Curatorial ao final deste trabalho.

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AÇÕES BANZO

Do gesto pessoal da fotografia como recorte (mônada que reflete uma totalidade social), à ação pública das tríades fotográficas em lambes: realidades que dialogam entre si – versos imagéticos expostos à crítica das ruas. Reapropriação pelo público da imagem antes emprestada. Processo de incitação a provocar questionamentos: do que olha; do que (se) expõe.

Tríades fotográficas: mosaico – composições que transcendem as mensagens da imagem particular, adquirindo sentido próprio. Alegoria aberta em significados, sugere caminhos, estimula sentires. Dupla refutação:

i) ao vazio relativismo pós-moderno com suas narrativas supostamente independentes de tudo (ou não)*;

ii) ao símbolo fechado com suas verdades lineares que sustentam a religião moderna**.

[* Anarquismo: “extrema-esquerda” do capitalismo (J. C. Mariátegui)]

[**Crença hegemônica difundida pelo andar de cima: comodamente cética, pautada por modelo de progresso somente atento ao que é – não ao que pode (deve) vir a ser; pregação da eterna espera austera-racional-responsável (para o Outro); mistificação do ter à revelia do ser].

Hexa-quadros: descritivo da ação de rua – exercício público de metalinguagem em torno dos lambes-tríades. Valorização da arte de rua e na rua; em contraste com a asséptica arte-mercado de especulação.

Manifesto foto-poético – pela desprostituição da arte, do artista-arrivista sujeitado, corrompido pela adesão fácil às estruturas: artista-carreira*.

[*A arte insubmissa não visa “carreira”, mas “tarefas” (B. Brecht).

Ou da dificuldade de se abordar certos temas; pintar o belo é mais fácil que pintar o feio].

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I Ação: Banzo do fim de feira

Descrição – Ilha do Bororé – Distrito do Grajaú / Zona Sul-SP

Primeira ação do então ainda “Trio” BANZO: saída diurna, realizada num domingo de 2014, na ocasião da Virada Sustentável, evento com variadas manifestações artísticas promovido por associação cultural do extremo Sul da Capital. Região periférica de Mata Atlântica, às margens da Represa Billings, e que embora degradada ainda conserva uma das maiores áreas verdes da metrópole. O dia chuvoso espanta parte do público. Nas ruas centrais do vilarejo se vê pouca gente, e um gentil cachorro nos acompanha e posa por entre as muralhas de mansões espertas de um ou outro corrupto que sacou ligeiro o potencial “sustentável” daquela vila semirrural, quase-ilha separada da favela geral a perder de vista por duas balsas (e altos muros com câmeras e flores, segundo a lógica moderna em seu viés eco-pós-moderno). Paciência, dizem, basta esperar o dia ao sol… que não chega; banzo social iluminado pela cola-de-sapateiro. Rico país cuja pobreza de espírito da truculenta patronal não permite à geral sair do fim de feira – em que chafurda nos pedaços podres do bolo mal-repartido.

Apátrida por ideal, marginal por histórico

que experiência pode transmitir aquele que anda nas mesmas ruas que o canalha,

que toma café-expresso e come no mesmo restaurante do canalha?

aquele artista que frequenta e usufrui do prestígio fácil da galeria do canalha

que bebe do bom vinho – bancado belo bolso sujo do canalha

e cujos filhos – meninos tão criativos – estudam na nova escola pós-moderna

– para arianos – junto aos filhos do canalha?

que sabedoria esperar do poeta ativista – crítico-crítico –

assíduo às festas, eventos e clubes – vips – do canalha,

mas sem tempo para frequentar manifestações populares, praças públicas, ruas esburacadas?

(porque está inserido no modo de pensar limpinho – do canalha:

“o que é público não presta, é sujo, perigoso

e além disso, só o que se paga se dá valor, você sabe…”)

o que da existência pôde compreender este artista, poeta, educador –

este ser que (embora subjetivamente honesto),

vive a pureza de seu cotidiano sem cicatrizes (“gratidão”!)

longe do mau cheiro das contradições e atrocidades dos “outros”

– este ser que vive de modo tão semelhante ao do canalha

e que, do povo, só conhece – e pouco – o da sua cozinha?

Alteridade, experiência, ver o outro

“O homem que acha doce sua terra natal, é ainda um frágil principiante.

Aquele que percebe o mundo como sua terra natal, já é forte.

Mas só alcança a plenitude aquele para quem o mundo todo é uma terra estrangeira”.

[Hugo de Saint-Victor / séc. XII]

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Tríades “TEMPO” – uma releitura em lambe-lambe

Da perspectiva socioartística abraçada pelos membros de BANZO surgiu a ideia-força da instância da rua, da interatividade, centro dessa releitura coletiva dos trabalhos individuais dos fotógrafos. As tríades fotográficas – formato que se constituiu no primeiro trabalho do grupo – foram montadas a partir de imagens dos três acervos integrantes, eleitas conjuntamente. A fotografia de BANZO, concebida nas ruas por lentes caminhantes, volta então ao pó das ruas, em um retorno da imagem, desde os olhares que a captaram, até os olhares captados. Faz parte do ímpeto anti-higienista por uma fotografia de rua. Fotografia que fala por si, ora declama, ora denuncia, reivindica: que diz, mas não aos moldes da arte “puro-conceito” que se arroga a ditar fios-da-meada e guiar olhares (empobrecimento da arte reduzida ao abstrato-insosso, ao purismo ainda louvado nas acrobacias da indústria das celebridades).

São tríades-mosaicos que conversam, que sugerem, em um intercâmbio sutil que gira em torno da reflexão sobre o TEMPO – temática inicial que nos escolheu nesta revisita. Fotografia que sussurra e sente saudade: imagens que sugerem desde o silêncio, a aridez e a solidão, marcas de Nosso Tempo, aos contrastes arcaicos do mundo contemporâneo, com suas crises morais e o cansaço que lhe é inerente.

Em 2014, os trípticos começaram a ser expostos, por meio de lambe-lambes que vem sendo desde então difundidos em meio público: muros, estabelecimentos, edifícios históricos, locais de aglomeração popular, albergues, ocupações, guetos de imigrantes, centros culturais, estações, rios, parques – espaços simbólicos (nesta primeira etapa) de São Paulo.

Neste artigo “Na Borda”, BANZO apresenta uma parte de seu olhar.

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[ coletivobanzo.wordpress.com ]

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II Ação: Sertão é o mundo

Descrição – Largo da Batata – Pinheiros / Zona Oeste-SP

Ação noturna de BANZO realizada na extensão da avenida Faria Lima que corta o Largo da Batata, local de travessia de pedestres, horário de saída de trabalhadores manuais que com suado desânimo regressam à casa após deixar um terço da vida em seus empregos-tédio. Repetição vulgar, esfolamento – poucos olhares fatigados se voltam ao que se passa no BANZO ao lado. Na recém-feita ciclovia que liga o bairro nobre ao bairro nobre, ciclistas em possantes bicicletas ameaçam velozes aqueles passantes imprudentes que atravessam rumo ao terminal de ônibus – insistindo em existir naquele espaço reservado aos corajosos aventureiros inter Jardins-Alto-de-Pinheiros. BANZO é xingado pelo mesmo motivo – mas não sem revides-registros. Após uma semana, BANZO volta ao local e registra a ação do tempo sobre as imagens. Passadas duas semanas, novamente: mas as imagens já estavam cobertas por excelentes ofertas de escravidão em telemárquetim.

“O sertão é aqui. O sertão é o mundo inteiro…

Deus mesmo, se vier, que venha armado”

[Guimarães Rosa]

A arte, a ciência, a filosofia não constituem fins em si mesmos, mas caminhos à liberdade humana, ao desenvolvimento de capacidades que permitam ao homem ser livre e desfrutar com plenitude de suas potências: intelecto, amor, criatividade, tesão.

[Marx – no dialeto contemporâneo]

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A mímese na fotografia de BANZO

A fotografia, como uma narrativa, pode ser compreendida segundo as três transformações que sofre – descritas por Paul Ricoeur, a partir das ideias de “mímese” de Aristóteles (“Poética”) e de “tempo como duração” de Agostinho (“Confissões”):

i- Primeira Mímese (prefiguração) – Trata-se da experiência do existir, da experimentação das possibilidades da vida, da troca de olhares, de cheiros, da comunicação de ideias dos mais variados estratos; é fruto da tentativa do “homem comum” de transitar por esferas diversas, provando-as; se funda no rompimento da incomunicabilidade e ansiedade dos tempos modernos, na recusa do conhecimento raso descontextualizado historicamente, saber-notícia propagado e ratificado há dois séculos pela imprensa-empresa – instrumento deseducador que foi chave na consolidação do poder do capital. [O andarilho, o conspirador, o escritor marginal – e aqui se inclui o fotógrafo de rua e todo aquele que se subtrai ao sistema, que fica à margem (que anda pela borda) – são elementos capazes de dedicar seu tempo à observação, à revelia do conforto ou segurança, de forma que logram sentir as demandas sociais latentes, captar brechas, perceber falhas na estrutura a ser derrubada (vide: W. Benjamin, “O autor como produtor”; R. Koselleck, “Futuro Passado”)].

ii- Segunda Mímese (configuração) – Construção da narrativa mediante registro de cenas de interesse; passagem do tempo da ação em si (primeira mímese), ao tempo configurado em símbolos, por meio de uma composição narrativa – no caso, mediante a captura das imagens fotográficas (que comporão as tríades) a partir dos registros das margens sociais, das imagens das senzalas silenciadas pela narrativa-autorizada; narrativa que se situa como elemento intermediário entre o tempo vivido pelo autor e o tempo vivido pelo público-observador.

iii – Terceira Mímese (refiguração) – reconstrução da narrativa proposta pelo autor, transformação da obra pelo olhar do espectador conforme sua compreensão e experiência própria; momento final do ciclo, em sua primeira volta, quando o trabalho se realiza em sua completude e reinicia seu trajeto, agora em meio a uma nova realidade, transformada pela experiência anterior.

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III Ação: Arcaico Contemporâneo

Descrição – Viaduto do Chá / Centro Velho-SP

O lambe é colado ao fim de tarde nas escadarias do Viaduto do Chá. Muitos transeuntes, interessantes diálogos, questionamentos, polêmicas – e suficientes registros da ação, até que, a partir de câmeras de vigilância policial, gambés da Guarda Civil interceptam os elementos transgressores, obrigando-os a retirar “imediatamente” o trabalho do patrimônio público, alegando que os pichadores já “provocaram muito o prefeito” e a tolerância está escassa. Observamos aos guardas que a parede está toda pichada, e que não resolverá o problema da pureza do viaduto retirar as fotos. O homem sempre com as mãos na arma e o peito estufado argumenta com singular inteligência que se insistirmos vamos ter que depor na delegacia e que é melhor evitar problemas. O corpo de segurança consiste de um homem que fala e duas mulheres que acenam afirmativamente com a cabeça a cada reprimenda dele. Dizemos que pois não, que não há problema, que o trabalho tem mesmo essa característica efêmera, embora não precisasse ser assim tão efêmero. Ele não entende ou não acha graça; pedimos então a ajuda do oficial para a retirada dos lambes, ao que, agora sim bem-humorado, ele responde com um longo e pausado: – “É claro… que não” – e sorri satisfeito de sua própria presença de espírito (as mulheres sorriem também). Jovens esqueitistas se solidarizam com BANZO no processo de descolagem; apesar do cuidado, as imagens rasgam, pois a tradicional cola de trigo de tecnologia punk já endurecera,  mostrando-se irredutível. O fato é imediatamente comunicado às autoridades, que diante da impossibilidade do ordenado, permitem que retiremos apenas o que for possível. Enquanto isso, nossas identidades são verificadas pelo sistema e liberadas após o registro da ocorrência.

Arte contemporânea na borda da crise

Um banzo generalizado pelo limiar da decadência ética, socioambiental, civilizacional.

Desmistificar o nome consagrado. Cartas marcadas elegem (e logo adocicam) as figurinhas comerciais usadas para ratificar as desprezíveis possibilidades de ascensão dentro do sistema. Romper a louvação do tipo artista-mesada, pretensamente independente que em toda sua independência-leite-ninho não lava sua própria privada (no “ateliê”), nem garante sua cozinha –  perpetuando, na exploração de serviçais, a hierarquia manual-intelectual que aleijou o trabalho moderno e que acaba por aleijar a ele mesmo.

Crítico-crítico tão crítico a qualquer crítica – pois “arte é tudo” –, mas que acrítico reproduz, na sua própria ação cotidiana, a merda (que não limpa).

[O consumo produz a produção [disse um atento poeta] de duas maneiras: na medida em que só no consumo o produto se torna produto; e na medida em que o consumo cria a necessidade de uma nova produção].

“Minha casa é meu castelo”: “Eis a forma assumida por todo estúpido herdeiro – ‘pobre capitalista’ coisificado [pelo mesmo sistema que mantém seus privilégios], mas ao mesmo tempo ambicioso em sua atividade profissional, que desafoga dentro dos muros de sua casa todos os seus instintos tirânicos reprimidos e pervertidos” [G. Lukács]”

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IV Ação: Sombras

Descrição – Viaduto do Minhocão / Noroeste-SP

 Ação noturna no Minhocão, sob o viaduto, na altura da estação Deodoro, local de moradia de dezenas de sem-tetos. Os habitantes – que já se preparam para dormir – nos recebem com gentileza e curiosidade, indicando lugares mais interessantes para a colagem. Um deles, que  arruma sua “casa” – composta de armários, sofás, mesas, livros, quadros e coloridos enfeites em uma estética barroca – nos convida a fotografar sua “obra” após o trabalho. O rapaz que dorme mais perto do pilar escolhido para o lambe, levanta-se e interage com o processo do começo ao fim: observa as tríades, questiona as formas e porquês, quer saber dos contextos e opina sobre cada fotografia. Ao seu lado, outro jovem continua a dormir sem se importar com o burburinho ao redor. O letreiro iluminadíssimo de um banco, ao lado, parece explicar o motivo pelo qual seres humanos jazem ali no meio da rua entre ônibus, carros, passantes e ratazanas: sombras.

“Por sua origem de classe, por seu caráter ideológico, a arte é a expressão da desagregação ou divisão social da humanidade.

Porém, por sua capacidade de estender uma ponte entre os homens através do tempo e das sociedades de classe, a arte mostra uma vocação de universalidade, e prefigura, de certo modo, o destino universal do humano, o qual só chegará a se cumprir efetivamente em uma nova sociedade, com a abolição dos particularismos – materiais e ideológicos – de classe”

[Sánchez Vázquez]

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V Ação: Golpe

Descrição – Brás / Zona Leste-SP

Ação no quarteirão-gueto boliviano da Rua Coimbra, no Brás. Feira de rua, cortiços, empanadas salteñas, variado comércio, aroma de comidas típicas e muita receptividade deste povo que mantém firme suas raízes indígenas. São Paulo em castelhano. Lado valioso desta Sampa-golpe: motor corrompido de nossa Nação Bananeira que insiste em permanecer à margem – nação incompleta, semi-nação espoliada por uma classe dominante que não se identifica com seu povo, que só tem olhos para fora, pensa ser gringa. Golpe parlamentar-judiciário-midiático: longo processo que já ganhava corpo em 2013 quando BANZO começa a desenhar seu coletivo. Esmagamento de direitos trabalhistas: educação, arte, aposentadoria, retrocesso não de 13 anos, mas de meio-século – pré-Vargas! Atraso como meta – ignorância como projeto nacional: lavagem cerebral. E os perigosos educadores e artistas taticamente agredidos sempre em primeiro lugar. Perguntada sobre as imagens [violência estatal, etc], a jovem imigrante andina responde que “sim”, que “é preciso resolver o problema dessas crianças ladras”. Escola Com Partido secular: Partido da Imprensa Golpista. Canibalismo social temerário sem lugar à menor reflexão – plim-plim: violência se resolve com armas, penitenciárias (superfaturadas), muros e câmeras – sorria!

A violência policial e o sistema prisional expressa o racismo estrutural – o fracasso do sistema em abolir efetivamente a escravidão”.

[Angela Davis – sobre a emblemática política policialesca-carcerária nos Estados Unidos e Brasil (vide: tucanistão paulista) ]

Preto no branco

As classes dominantes desde cedo se protegem psiquicamente de qualquer autocrítica, a ponto de quando formados serem capazes de realmente não enxergar o outro, a miséria do outro, a dor do outro. Sua ética limitada não comporta imaginar-se no lugar do outro, sujeito às humilhações que ela mesma promove ao outro – à exploração, à insalubridade, às restrições materiais e ao desgaste psicofísico que causa aos seus serviçais subalternos.

Trata-se de uma autocastração ao mesmo tempo psicológica e ética – em última instância: uma severa ignorância autoimposta pelas elites pobres-de-espírito a si e a seus herdeiros, como dispositivo de fuga da culpa e de sua consequente vergonha por seus próprios atos. Logram assim, senão ocultar, ao menos adiar – por entre falácias de méritos e destinos divinatórios – sua própria decadência civilizacional, sua impotência histórica de promover um mundo menos aberrante.

Dentre os discursos que sustentam tal ignorância em limites seguros à psique do privilegiado, está o do ceticismo: a ideia niilista tornada hegemônica de que nada poderia ser diferente, de que as coisas são como são e que fazemos o melhor que nos é possível – ou em suma, que o melhor mundo panglossiano é de fato em um só tempo o pior mundo possível, e não adianta agir doutra maneira: aliás, dizem, o mais seguro é que não se aja.

Preto no branco, o progressismo bacana, se resume em que a negra babá do filho do branco, na cozinha do branco e longe do filho preto e da cozinha preta estaria no melhor lugar branco reservado a ela, e embora tal situação seja “insustentável” (mesmo segundo a perspectiva ecológica que comove os privilegiados sensíveis, dada a impossibilidade de que toda a população tenha um, ou antes uma, serviçal pra chamar de sua), a conclusão é a de que se trata de uma santa-alma caridosa – “fazendo sua parte por um mundo melhor” – aquela que oferece um “salário-mínimo e meio” a essa gente tão sofrida, sem qualquer oportunidade no deus-mercado divinamente concebido como o estado último da civilização.

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VI Ação: Resistência

Descrição – Rua da Consolação com Av. Paulista – Centro Novo-SP

Golpe de 2016 consumado: cleptocracia ao poder. Povo, ainda atordoado, começa a se reerguer do baque. Grande marcha vermelha – verde-amarelos, seleção-brasileira, cobertura-Global desapareceram após a lista da Odebrecht – mesmo desfrutando de catracas de metrô liberadas. Desde a Paulista, quase 100 mil pessoas descem a Consolação rumo à República. BANZO age na curva, no ponto de ônibus do Cine Belas-Artes, em meio aos manifestantes. MTST presente  e cúmplice do lambe – assim como sindicalistas, vários fotógrafos de ocasião e a moça que nos pede um retrato. Os cachorros da polícia farejam de perto, prontos para agredir ao menor descuido – e desta vez não sobram sorrisos meganhas para “selfies” alegres. Centenas de coletes anti-balas, escudos e fuzis compõe o arsenal da guerra de uma corporação criada contra o bem-estar e a vida de seu próprio povo.

O trabalho do colonizador [já sem utopias] é tornar impossível até mesmo os sonhos de liberdade do colonizado.

Ao libertar-se, o oprimido liberta não somente a si, mas a seu opressor.

[Frantz Fanon; Paulo Freire]

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O Coletivo BANZO

Os três andarilhos-fotógrafos de BANZO são trabalhadores e ativistas de caminho diverso, embora convergente, que desbravam territórios dos mais variados, retratando periferias, centros urbanos e cenários do campo: desde São Paulos desconhecidas pela progressista elite vilamadalenizadaaté os rincões mais ermos do Brasil e de países de todo o mundo. São camaradas e amigos que, após longas caminhadas solitárias, se reúnem para submeter seus pontos de vista ao questionamento do diálogo – refletindo sobre suas inquietudes e os frutos de seus pés na estrada. Sua fotografia, mais que feita – planejada – é uma fotografia que acontece, que emerge como oportunidade no calor do caminho do viandante: ação como gesto de fé no porvir.

Marcelo Min (em memória)

Fotojornalista correspondente de vários meios impressos, em atividade há mais de duas décadas, caracteriza-se por sua atenção às cenas cotidianas das ruas, a detalhes essenciais – e periféricos – com que se defrontou em suas tantas pautas realizadas em diversos países. Sua mirada nessa mostra coletiva é especialmente atenta à infância, às possibilidades do futuro. Imerso no jornalismo, valorizou o ato da fotografia publicada; foi também documentarista e autor do livro “Parto com amor” (Panda, 2011), além de ter realizado a primorosa fotografia cinematográfica de “Jaci – sete pecados de uma obra amazônica” (2014).

[marcelomin.com.br]

Paulo Cesar Lima

Fotógrafo com trabalho dedicado às artes (visuais, dança, teatro) e a expressões do patrimônio cultural brasileiro material e imaterial. Com formação em comunicação social, sua mirada mescla o rigor técnico à poesia, em ensaios caracterizados pela leveza, que se voltam sobretudo às tradições da cultura popular, ao folclore e à religiosidade brasileira – estudos onde o tempo estampado em delicadas texturas é fator essencial. Expôs em diversos museus, dentre os quais se destacam o Museu Afro-Brasileiro (São Paulo), o Instituto Goethe (Salvador) e o Museu Humberto Mauro (Cataguases).

[www.flickr.com.photos/paulocesarlima]

Yuri Martins Fontes

Escritor e fotógrafo-cronista, tem na fotografia uma forma narrativa – face que complementa seu trabalho literário. Seu acervo “antropográfico”, fruto de expedições pelos quatro cantos do mundo, é composto por imagens centradas no Homem e na diversidade cultural – registros de viagens que abarcam meia centena de países percorridos em transportes públicos, por terra e água. Com formação em filosofia e história, seu trabalho fotográfico de viés antropológico caminha ao lado das letras, alinhavando questões como existência, solidão e subversão.

[yurimartinsfontes.wordpress.com]

Colaboradores Banzo

Colaboraram com este trabalho de BANZO os seguintes companheiros, a quem agradecemos e convidamos a continuarem juntos: Mariana Meyer (revisão geral, arte-edição); Eric Grossi (fotografia da ação “Resistência”/ marcha contra o golpe de 2016); e Luciana Benatti e Fabiano Zig (pelo apoio na recuperação de importante parte do acervo do Coletivo Banzo constante do maquinário de nosso querido e sempre presente Marcelo Min).

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[Nota de Memória] Banzo, a fotografia revivida

São Paulo, 2017

“Tempo”, o primeiro trabalho de Banzo, foi concebido pelos três autores, após diversos debates acerca de forma e conteúdo e da inseparabilidade de ambos, durante o período de 2013 a 2015, como uma série de exposições de dupla perspectiva: uma mostra popular e permanente de tríades levadas com regularidade à crítica e ação das ruas; acompanhada de mostra museológica do acervo combinado do trio – em espaço sempre público e gratuito –, em formato expositivo tradicional.

Neste processo foram selecionadas centenas de imagens dos três membros, e compostas variadas tríades, muitas vezes dialeticamente reinventadas a cada encontro mensal do coletivo.

Demos início, em um primeiro momento, às ações de rua com lambes, no ano de 2014 – uma época que nos encheu de energia e fé no trabalho coletivo, reaproximando-nos a todos de nossa própria fotografia esquecida nas gavetas deste tempo ansioso que quase não permite lembrar.

Em 2015, nossas ações de rua e diálogos com espaços expositivos foram interrompidos, e nosso coletivo como um todo abalado pelo súbito falecimento de nosso amigo e camarada Marcelo Min. Esta fatalidade se deu em um momento de êxtase ou aprofundamento radical de nosso coletivo, cujas atividades nos animavam cada dia mais. No caso de Marcelo, em especial, havia um motivo especial, sobre o que muito conversávamos: após décadas de dedicação ao fotojornalismo responsável, sentiu na pele, nos últimos anos, o descaso profissional e ético por parte das decadentes corporações jornalísticas com as quais trabalhou, em um momento em que o fotógrafo perde seu protagonismo social – e foi com as atividades de rua de Banzo – éticas, estéticas, lúdico-etílicas – que ele recobrou seu apreço pela fotografia (num momento em que, aliás, migrava cada vez mais para a linguagem de vídeo).

Após um hiato de luto e desânimo, retomamos em 2016 as atividades de Banzo, focando-nos em nossas atividades de rua – que foi efetivamente a essência motivadora de nossa união e mobilização.

Nossa ideia nesta retomada não é de modo algum “concluir” o trabalho começado, mas como verdadeira homenagem, não apenas ao nosso amigo e ao que ele acreditava, mas ao que nós mesmo acreditamos, nosso intuito é fazer deste projeto uma práxis de vida, uma maneira de conceber o próprio fazer artístico: nas ruas, em meio ao olhar do outro, dos outros, do diverso, o olhar que incômoda e modifica, nos modifica.

Vai-se o homem, fica a semente: um humanista que fará falta; não apenas pessoalmente nos deixa saudade, mas desfalca com sua profundidade de espírito a luta de todos que não toleram o mundo medíocre presente. Já já nos vemos pra tomar aquela saideira, mano!

[Paulo Cesar Lima e Yuri Martins Fontes – Coletivo Banzo]

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[Nota Curatorial] “O Tempo do Coletivo Banzo”

São Paulo, 2015

Participar da curadoria da mostra “Tempo” (iniciada em 2014), do Coletivo Banzo, significa “reviver” junto aos fotógrafos parte de sua rica trajetória. Em meio a três discursos que se alinham à proposta de uma fotografia em um só tempo simples e densa, que une o átimo reflexivo ao improviso sincerome deparei, na complementariedade entre as três poéticas, com aquilo que me parecia intuitivo e ao mesmo tempo complexo: como relacionar as contingências do real, o processo do tempo, a transitoriedade da vida, ao olhar crítico, humanista e nômade, presentes no trabalho destes três jovens fotógrafos? Sem incorrer em tautologias e definições vazias, deixo a questão em aberto e convido-os a apreciarem as imagens que, sem a espetacularização de efeitos e afetações estéticas, dizem respeito a todos nós.

Adequar palavras às imagens é tarefa complexa, o processo passa por transfigurações e ressignificações; afinal como conciliar o que se dá em partes, característica da escrita, com o que se dá num todo, num só golpe para o olho, característica das imagens? Como conciliar a simultaneidade do mundo, a aleatoriedade da vida, com a linearidade da linguagem? Bem sabemos que a fotografia é campo privilegiado da imagem, então vamos tentar esboçar em poucas palavras a urgência metalinguística do Coletivo Banzo.

Registrando pessoas, cidades, acontecimentos, a natureza, o movimento, a pluralidade e os anacronismos das sociedades, os artistas do Coletivo Banzo a princípio, em seu ato de reunião, propuseram reler suas obras a partir de lambes, cujas matrizes foram fotografias dispostas em tríades, colados em meio a lugares públicos e posteriormente refotografados – encampando a presença do público que os assistia. Os lambes foram a base que unificou as diversas linguagens de Banzo. Nesta mostra trazem fotos do acervo de cada um dos três integrantes do grupo, fruto de vinte anos de trabalho ininterrupto, revisitadas.

Sem desfigurar os temas registrados, nas fotografias do Coletivo Banzo temos uma outra imagem da mesma imagem: passagem, ligação, complexidade e desdobramento da sua própria aparência. O que se destaca nessas obras é sua posição catalisadora e relacional. Interface entre o olhar e a ação, o conceito e a coisa. Estão aqui anexados os olhares do fotógrafo, do público e de nós que vivenciamos, cúmplices, este verdadeiro agenciamento semântico. Afinal, as imagens fotográficas nos servem como guias para acessarmos um olhar sobre o mundo, uma refiguração que transcende o registro das coisas em si. O Coletivo Banzo nos propõe o encontro, o acaso e a sensibilidade.

[*Rubens Zaccharias Júnior – professor do Centro Universitário Belas Artes-SP, mestre em comunicação e semiótica pela PUC-SP, produtor cultural e co-curador de “Tempo”]

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