SOBRE O ELEFANTE BRANCO POR FABIANE BORGES

Fabiane Borges

doutoranda em psicologia clínica – Puc.SP, psicóloga, pesquisadora de arte e comunicação.
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Sobre O Elefante Branco por Fabiane Borges

Sobre o Elefante Branco

Por Fabiane Borges

1 Relato da Exposição

1 1 Os artistas Túlio Tavares, Eduardo Verderame e Alexandre Fehr criaram uma exposição de arte num casarão dos Fehr, à venda, situado no Jardim Europa em julho de 2009 em são Paulo. Como organizadores e curadores da exposição convidaram alguns artistas para fazerem a ocupação artística na casa grande e nobre. Não existia nenhum eixo temático para a produção das obras, assim como nenhum investimento financeiro externo, a não ser dos próprios envolvidos na exposição. Nas primeiras reuniões na casa, os artistas começaram escolher seus espaços, dizer das suas propostas estéticas, trocar idéias sobre materiais que pretendiam utilizar, expor os conteúdos sensíveis que inspiravam seus projetos e criar diálogos entre os trabalhos, produzindo (de forma não oficial) um sentido de coletividade na exposição.

1 2 Os artistas utilizaram técnicas de desenho, pintura, fotografia, costura, escultura, instalação, projeção, histórias em quadrinho, performance e os temas apresentados giraram em torno de meio ambiente, fronteira,  crítica à arte institucional, exclusão, memória, voyeurismo, erotismo.

1 3 A qualidade dos trabalhos foram surpreendentes, houve um investimento sério por parte dos artistas e organizadores, que além do econômico também investiram tempo, criação e afetividade. As obras ganharam todo o espaço do casarão, garagem, paredes, jardins, salas, quartos, banheiros.

1 4 A abertura da exposição lotou todos os espaços, foi um sucesso de público, e teve muitas visitas de colecionadores, críticos de arte, galeristas, etc. Mas até onde eu sei quase nada foi vendido.

2  Assuntos da Exposição

2 1 Na primeira reunião aberta ao público o assunto escolhido para discussão foi fronteiras, inspirado no trabalho de Rodrigo Araújo, que baseado na fronteira entre México e Estados Unidos fez instalação de um jogo de ping pong cuja rede era feita de lanças móveis, cada batida na rede uma fronteira derrubada, o que proporcionou grande alegria aos maus jogadores que batiam de forma estabanada numa bolinha que tinha desenho de pássaro, enquanto derrubavam fronteiras decididas no giz. Túlio Tavares falava em baloes, elefantes voadores, inscrição na história para além da temporalidade atual e dizia dos artistas que mesmo não tendo parte nos circuitos oficiais da arte viviam para ela, debatendo¬se contra critérios que circunscrevem o território artístico, que determina quem tem ou não tem valor, como se o pensar e fazer arte não fosse uma força própria da natureza da arte, deixando bem clara sua certeza que naquele lugar um fronteira tinha sido quebrada, mas não no solo, no ar, nas ondas do quase imemorial, de uma virtualidade ascendente e espiralada que eram fortes o suficiente para se lançarem no mundo e criar sentidos de mundo. E pedia insistentemente para que notássemos os signos propostos em cada trabalho, que inconscientes pairavam naquele lugar, tínhamos algo a dizer para e sobre o mundo? Rodrigo, criador da instalação falava sobre a idéia de eu, dos limites do corpo e da identidade como o território primeiro, das formas que dispúnhamos de driblar tais limites impostos parte pela genética, parte pela própria ideologia territorial, a dificuldade e o esforço que é chegar ao outro. Políticas de identidades territoriais, sexuais, artísticas, ativistas percorrendo como fio de navalha cada laço  da exposição. De certa forma todos artistas presentes debatiam¬se sobre temas pungentes na contemporaneidade, redes, territórios, sobrevivências foram ganhando traço de obra de arte e expressavam um pouco de realidade atada a pura criatividade.

2 2 Edson Barros lançou pergunta fatídica sobre a exposição: _ O que acontece com essa exposição se não aparecerem galeristas, colecionadores, compradores das obras? Todo esforço investido para apreciação dos curiosos e festinha de abertura de exposição? Parece que Edson reclamava de um certo orgulho dos artistas em demonstrar publicamente que podem fazer suas obras e exposições de forma independente, sem nenhum apoio e desvinculado de qualquer instituição, o que ele próprio já fez em demasia, isso queria dizer que compartilhava em certa medida com essa autonomia, mas que nas atuais circunstâncias políticas e econômicas mundiais sentia que era preciso novos movimentos, modos de sustentar as produções, e nesse sentido não se referia mais somente a arte mas a tudo que era produzido, todas tarefas insistentes e desvalorizadas, todas produções e todos produtores invisibilizados pela máquina de consumo geral em série. Sobre economia foi pensada algumas alternativas para fugir do mercado da arte, como leiloes, criação de valor sobre os produtores e até mesmo venda pessoal à preços de custo. O projeto ACERVO organizado por Leonardo Videla e outros artistas cariocas foi falada como alternativa interessante para a criação de uma certa sustentabilidade da cotidianidade do artista, pois o projeto ACERVO vende obras artísticas em pacotes baratos para colecionadores, sem intermediação dos galeristas, promovendo uma espécie de liquidação de obras, mas ao mesmo tempo, acoplando em suas propostas um movimento político de desmistificação da figura do colecionador, incentivando a sustentabilidade ordinária dos produtores de arte e agregação de valor aos trabalhos. Mas no Elefante Branco especificamente, nenhuma dessas idéias foram executadas, seja por não representar a grande questão do evento, seja por preguiça e falta de consciência dos problemas concretos que o artista vive e talvez também alguma falta de desejo de criar saídas para serem utilizadas não só no campo da arte como em outros seguimentos da sociedade.

2 3 Lixo! A grande quantidade de lixo artístico produzido mundialmente, obras que nem são valorizadas pelo mercado, nem compradas ou aceitas de graça pelos parentes mais próximos dos artistas. O que fazer com as sobras das exposições, com quadros que vão ficar para sempre fora das paredes das galerias, com as instalações que geralmente só servem para a exposição específica e que até hoje não se sabe exatamente que caminhos de venda possui, que demanda é preciso criar para que se consuma arte, mesmo que esta seja inútil, que não tenha necessidade de existir, e que nem sequer esteticamente seja importante para o circuito da arte? Seremos enquanto país periférico o local de recepção dos excedentes produzidos nos países desenvolvidos? Devolvendo nós mesmos para nossos solos nossos próprios excessos artísticos? Habitaremos a linha fronteiriça entre a inutilidade e a necessidade insistindo em fazer algo inútil desde que sígnico? Como ativistas que já realizaram vários projetos políticos coletivos, os artistas dessa exposição habitavam essa zona de fronteira. As experiências no Prestes Maia, nas ocupações promovidas pelos movimentos de moradia, nos eventos de arte¬política realizados em favelas, junto a moradores de rua, catadores de materiais reciclados, levaram parte desses artistas a questionarem profundamente seu papel de artista no mundo, e muitos nunca mais se recuperaram desse ponto nodal. A mim parece que Peetssa, que além de bombeiro, fotógrafo, artista é ambientalista, deu conta de evidenciar esse paradoxo, instalando na garagem do casarão uma mesa de trabalho manual onde criou um gerador de energia elétrico com materiais reciclados como hard discs, bicicleta velha e fios de cobre. O trabalho foi produzido durante todo período da exposição, cerca de 20 dias, e depois instalado na

Reserva Canhambora em Iporanga no Vale do Ribeira, onde o expositor desenvolve alguns trabalhos relacionados a meio ambiente. Quando falo que esta obra explicitou o paradoxo, foi porque sua obra é o contrário do inútil, contendo informações necessárias como auto¬sustentabilidade, reaproveitamento de materiais, reciclagem. Peetzza desenvolveu um trabalho estético com profunda ligação com os problemas contemporâneos de forma a tornar o objeto artístico um objeto útil e alternativo. Entretanto a reciclagem propriamente, não resolve o problema da inutilidade da obra de arte. Uma pergunta: Quanto mais caminhamos para a economia da informação mais inútil se torna a obra de arte sígnica, aquela que tinha função de fazer os sentidos do simbólico e do real circularem, lançarem¬se no espaço do ainda não pensado? Os museus e galerias lançam seus editais em busca de respostas e recompensas aos direitos humanos, tao invisibilizados poucos anos atrás, e os artistas do signo assistem sua incompetência para lidar com os novos padrões, ou atiçam¬se desesperados às tramas problemáticas do socius, tentando inscreverem¬se como artistas políticos. E o lixo se multiplica a cada exposição. Vive¬se sob a égide da utilidade, da reciclagem e do consumo, e a pergunta insiste, qual lixeira é depositado os excedentes das artes visuais e plásticas?

2 4 Memória -Flávia Sammarone criou memória. Trabalho bonito. Pedaços de cabelos saindo das paredes, dos canos, das dobras das janelas, do ralo, pedaços de cabelos, fantasmas evidenciando um passado emergente. Uma espécie de confronto com o esquecimento, a transformação do passado através de recortes de fotos, de cópias de um mesmo rosto transposto para todos outros rostos que se antes eram diferentes agora ganhavam repetição: todos sua tia avó. O pai filmando ela criança, ela imitando a imagem do pai se filmando a si própria com uma máscara espelhada na cara que espelhava a própria cara espelhada, sem fim, numa penteadeira antiga que penteou tantos cabelos parentes. Escovas, recortes e fotos de casamento. Pés caminhando pela superfície de um passado bem provável, mas somente na memória da artista. O olhar da criança adulta e órfã de pai a dar voltas na sala, como quem procura o tempo que foi. Uma mulher que coleciona cabelos e fotografias de família. Que revela o passado através de ritual por ela mesma proposto. Ritual de reciclagem de passado. Sua obra. Não só reciclagem de objeto, mas também de memórias. Uma trans análise dos signos do seu próprio passado. Espécie de reconfiguração de memórias que apresenta saída bem interessante para os enredos perigosos proporcionados pelas fotos e suas lembranças. Enquanto isso, a artista apagava um livro sentada em escrivania antiga, um livro apagado desde o início. A memória funcionando como dispositivo estético alterando passado e futuro da artista e trazendo o público para dentro dessa transformação.

2 4 Fase erótica. O que há de libertação no erotismo? Pergunta de Flávia Vivacqua referente a três trabalhos da exposição: Mônica Rizzoli, Esquizotrans e Alexandre Fehr. A primeira com quadros eróticos (desenhos) em um quartinho ao lado da cozinha; o segundo com uma banheira coberta de tinta branca com um vídeo de seis mulheres falando nos seus pênis, como se fossem homens; o terceiro, mais voyeur, ativando a curiosidade do público, que não podia entrar inteiramente no quarto com porta trancada por uma pequena corrente, deixando o som de uma briga de casal: acusações, ressentimentos, vinganças, desentendimentos da vida privada. Todo artista passa por alguma fase erótica, nem sempre o erotismo é libertador, porém há algo de liberador no ato de sua evocação. Um abre caminhos, uma válvula de escape. Uma espécie de elemento que permeia os corpos, que não tem dono, que nos convoca um lugar de desejo, de sensualidade, de sexualidade viva, que nos lembra do prazer possível na junção dos corpos, que nos tira do padrão racional de análise e lógica, e nos faz imergir em outras potências dos corpos, que não servem só ao hedonismo, mas podem circunscrever territórios muito próprios de poder, autoridade, machismo, disputa política, território e natureza. De modo que a sexualidade imprime um campo de forças próprio, que se equivale aos campos de poder sócio¬culturais, que está imbricado deles, que está entre eles, e que nos ativa sensações de estupor, asco, domínio, erotismo. O erotismo não é bom por si mesmo, ele é potência, as sensações que nele se atrelam ou desviam, são relativas às experiências físicas ou virtuais. Nesse sentido sua presença na exposição, revelava necessidade, também desejo, e uma inusitada diversidade.

2 5 – Pelas paredes, pelas escadarias o trabalho de Túlio Tavares sobrevoando a exposição, ratinhos roendo roupas de reis, rindo de institucionalidades indevidas, o parangomonstro, homenagem particular à obra de Hélio Oiticica, visitando nomes importantes da arte brasileira nos cemitérios, de havaianas e máscara monstruosa. Túlio traz a crítica e a ode à arte, conjuntamente, propõe com humor pontos de tensão entre história da arte, criação simbólica e crítica social. O parangomonstro visita os bueiros da cidade, esconderijos de desabrigados e logo pula por cima de caixões no cemitério como quem revisita a história da arte, para libertar o futuro desse peso, mas não abrindo mão da memória, nem da brincadeira, enquanto o ratinho aparece nas instituições financiadoras, chato e risonho, como quem diz que não se matarão nunca todos os ratos, os ratos marginais que sobrevivem por baixo das construções altivas. Como proponente da exposição, vê¬se que traz o signo do escárnio sobre sua própria produção, fazendo valer uma noção básica da esquizo¬paranóia, de ser um ponto que deflagra o ambiente, desconfiando de si mesma, mas produzindo mesmo assim, realidade.

3 Resumo

Daria para se falar muito sobre cada trabalho, mas isso tornaria o texto grande demais, prefiro terminar resumindo uma sensação, a de que o Elefante Branco foi uma brincadeira séria, sobre economia, coletivo de arte x artista individual, signos e inconsciente. Foi uma espécie de retomada dos eventos festivos coletivos, dessa vez não mais em despejos de sem tetos, ou favela, ou espaços urbanos coletivos, mas num casarão do Jardim Europa, que deixou todos com vontade de ocupação mais glamourosa mais excessos e gozo. Foi uma deflagração do desejo coletivo, que atiçou a vontade da retomada de arte coletiva de um certo circuito de arte paulista, e também vontade de mais exuberância, excentricidade e fartura.

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