ZONA DE POESIA ÁRIDA por André Mesquita

ZONA DE POESIA ÁRIDA

ZONA DE POESIA ÁRIDA

por André Mesquita

A frase “Zona de Poesia Árida” vem de um projeto do coletivo Cia. Cachorra em colaboração com um grupo de alunos de uma oficina pública. Percursos pelo Parque da Luz e outras imediações do Centro levaram os alunos a verificar o contraste entre a aridez e a pouca sutileza existente na vida da região. “A poesia existe, mas ela não tem água para viver”, observa Fabiana Prado, integrante do coletivo. Em fevereiro de 2006,

Fabiana deslocou uma placa com a frase para a ocupação Prestes Maia, onde plantou com as crianças da ocupação uma árvore em frente ao prédio. “Ao lado dela, colocamos um bilhete com a frase ‘programa de irrigação poética’. É um pouco dessa metáfora da irrigação para acabar com a aridez. Para mim, isso é colocar poética no mundo, criar linguagem.” “Zona de Poesia Árida” resume uma situação de quase cinco anos vivida por 468 famílias na maior ocupação vertical da América Latina até o seu fim, em junho de 2007. Ocupado na noite de 3 de novembro de 2002 pelo Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC), 1.630 pessoas, distribuídas entre os dois blocos de edifícios de 22 e 13 andares129, habituaram-se a uma rotina de impasses judiciais, ameaças de reintegração de posse pela polícia e uma luta popular que se confundia e se chocava com os coletivos de arte que ali atuaram.

Uma primeira e breve contextualização sobre o Centro de São Paulo e a ação dos movimentos de moradia na cidade pode apresentar melhor a situação que os grupos de

Nos anos de 1950, o prédio da ocupação, localizado no número 911 da Avenida Prestes Maia, abrigou uma fábrica de tecidos. Seus dois proprietários, os empresários Jorge Hamuche e Eduardo Amorim, arremataram o imóvel em um leilão e deviam até o despejo uma dívida de cerca de cerca de R$ 5,7 milhões de IPTU. Após um acordo financiado pelo governo federal, os moradores da ocupação decidiram sair. O acordo previu encaminhar 150 famílias para apartamentos da Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU) em Itaquera, na Zona Leste, enquanto as demais receberiam uma ajuda de custo mensal de R$ 300 para alugar por seis meses um imóvel na região. Com a prefeitura, ficou acordada a compra e a reforma de prédios na região indicados pelo MSTC. artistas, em sua grande maioria de classe média e não residente na região, tiveram que enfrentar ao estabelecer contatos e níveis de colaboração com as ocupações sem-teto. Diferente de qualquer outra situação em que os artistas se mudam para uma região central da cidade, por conta dos aluguéis baratos ou por uma oportunidade de coletivização de sua produção, criando suas galerias não-comerciais, espaços alternativos ou squats ocupados por ativistas, é possível dizer que este tipo de iniciativa, com raríssimas e anônimas exceções, nunca ocorreu no Centro de São Paulo. Bairros como a Vila Madalena ainda permanecem como um dos redutos “boêmios” dos artistas que, durante os anos 70, instalaram ali seus estúdios, feiras, galerias e ateliês, valorizando a região.

No Centro paulistano, uma grande quantidade de prédios permanece desocupada em uma área que combina processos de decadência e gentrificação, atrelada aos investimentos corporativos de corredores culturais que incluem a presença de um público pagante e “civilizado”130 . É preciso, mais uma vez, reafirmar que a

gentrificação solicita um desinvestimento de uma área antes que um novo capital seja aplicado. Este processo envolve, esclarece Martha Rosler, “não apenas a retirada de apoio monetário de parte do setor privado, incluindo proprietários de imóveis e bancos

(…), mas também a retirada de serviços sociais básicos (…). Quando a recapitalização

da gentrificação ocorre, muitos dos moradores antigos são forçados a sair, ou forçados

a viver sob situações grotescas.”131 Os investimentos imobiliários da cidade de São Paulo confirmam o aumento de edifícios comerciais, apartamentos e condomínios de luxo nas zonas Oeste e Sul, enquanto a imagem que se divulga e se percebe do Centro é a de um espaço degradado, poluído e mal cuidado. Um espaço com cortiços, edifícios abandonados e invadidos, moradores de rua e um ambiente de insegurança tomado pelo mercado “fordista-popular” da economia informal dos camelôs e da venda de artesanato132 .

Uma pesquisa realizada em 2000 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE) revela que existem mais imóveis desocupados que famílias sem casa na cidade de São Paulo. Dados da pesquisa mostram que o número de imóveis vazios

130 Localizada na antiga Estação Júlio Prestes, ao lado da Pinacoteca do Estado e próxima ao prédio ocupado pelo MSTC, a Sala São Paulo é um exemplo desta culturalização da economia do Centro. 131 ROSLER, Martha. “Fragments of a metropolitan viewpoint”, in WALLIS, Brian (ed.). (ed.). If You Lived Here. The City in Art, Theory and Social Activism. A project by Martha Rosler. Seattle: Bay Press,

1991. pp. 25 e 26. 132 D’ ARC. Helène Rivière. “Requalificar o século XX: projeto para o centro de São Paulo”, in BIDOUZACHARIASEN, Catherine (ed). De Volta à Cidade: dos processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dos centros urbanos. São Paulo: Annablume, 2006. p. 270. (254 mil unidades) é maior que a estimativa de déficit habitacional cidade (203,4 mil unidades). “Quase 10% dos domicílios vagos da cidade estão no Centro, descumprindo sua função social. Isto, em números, representa cerca de 40 mil residências vagas.”133

Com a queda dos valores imobiliários, a afluência de habitantes de baixa renda para a região central começou a tomar força nos anos 90. Naquela década, conforme o arquiteto Nabil Bonduki, os movimentos de moradia começaram a exigir o cumprimento das demandas dos programas sociais e de habitação. Prédios vazios foram ocupados por centenas de famílias ligadas aos movimentos sem-teto, como o MSTC e o MMRC (Movimento de Moradia da Região Centro), chamando a atenção para o direito de se viver em locais com infra-estrutura, serviços sociais e trabalhos. Movimentos sociais urbanos, ressalta o arquiteto, constituem parte de uma luta pela democracia iniciada na década de 1970 durante o regime militar134 .

As ocupações no Centro de São Paulo propõem-se a criar pressão e impacto na mídia, chamando a atenção para as políticas públicas e o debate sobre a revitalização da região. Esta revitalização, explica Bonduki, é polarizada: “um lado procura recuperar o glamour do Centro e torná-lo mais atrativo à classe média e às corporações; o outro – sem rejeitar a necessidade de revitalizar o Centro – afirma a necessidade de garantir espaço para as pessoas pobres, através de iniciativas de moradia e programas de geração de renda e emprego.”135 Esta segunda alternativa seguiria o princípio de uma diversidade não atrelada à requalificação patrocinada pelo setor privado na promoção e no consumo de bens culturais, mas uma intervenção pública que conferiria às camadas populares o direito de morar e de trabalhar no Centro, transformando-as em “atores sociais dessa história e dessa urbanidade.”136

O que fizeram os coletivos de São Paulo ao colocar sua irrigação poética neste complexo território de segregação social, onde o núcleo catalisador e atuante de experimentação, de intervenção e de confronto foi, justamente, a ocupação Prestes

Maia? O primeiro encontro entre coletivos e ocupação ocorreu no evento/exposição Arte Contemporânea no Movimento Sem-Teto do Centro (ACMSTC), em dezembro de

2003. Reuniões e negociações entre as lideranças do movimento (formadas por

133 FÓRUM CENTRO VIVO (org.). Dossiê Violações de Direitos Humanos no Centro de São Paulo –  Propostas e Reivindicações para políticas públicas, 2006. p. 9.

134 BONDUKI, Nabil. “São Paulo at the Turn of the Twenty-First Century: The City, Its Culture and the Struggle Against Exclusion”, in PONTBRIAND, Chantal (ed.). Parachute – São Paulo, nº116. Montreal: 2004. p. 97.

135 Ibidem. p. 101. 136 D’ ARC. Helène Rivière. op. cit, p. 288.

mulheres), coordenadores da exposição (Túlio Tavares e Fabiane Borges) e alguns artistas foram realizadas na iminência de uma nova situação de despejo. Os coordenadores mobilizaram suas redes de contatos de artistas – muitos deles com conhecida inserção no circuito de arte convencional – e promoveram algumas “excursões” pelos andares, salões e escadas do prédio. Pela primeira vez, muitos artistas que pouco circulavam pelo Centro entraram em uma ocupação de sem-teto. Mariana Cavalcante, participante dos grupos Esqueleto Coletivo, Integração Sem Posse e Tranca RUa, lembra que a idéia de uma exposição de arte surgiu da vontade de algumas lideranças do movimento em trazer pessoas de fora que pudessem ajudar a modificar a imagem da ocupação.

Porque o movimento ocupa espaços privados, faz uma ação ilegal, e isso faz com que as pessoas da ocupação sejam vistas como marginais, e ainda são por boa parte da sociedade. A vontade era a de fazer com que as pessoas vissem o outro lado, de que existia um movimento organizado, trabalhando de forma coletiva. Um movimento que expulsou o tráfico de drogas do prédio e que estava melhorando aquele espaço ocupado.

Em um fim de semana, os artistas se apropriaram dos andares do prédio ocupado há um ano pelas famílias. O intenso contraste social produziu encontros amigáveis e sutis, outros mais agressivos, laços de amizade, envolvimentos pessoais e muitos conflitos e crises. Na exposição, onde participaram 120 artistas com suas performances, instalações e intervenções, Tiago Judas criou esculturas nas paredes da ocupação, desenhadas com os corpos das pessoas. No último andar do prédio, uma enorme pipa foi instalada por André Bueno, aos poucos rasgada pelo vento. Nos andares, grafiteiros ocuparam as paredes, o que gerou desconforto por conta da poluição visual e o cheiro de tinta entrando na casa das pessoas. Alguns artistas simplesmente penduraram quadros e foram embora. Os integrantes do Esqueleto Coletivo agiram individualmente por meio de conversas, ações dialógicas e atividades participativas com os moradores. Rodrigo Barbosa criou Caminhos, um mapa da América Latina onde marcava com os moradores suas trajetórias até chegar a São Paulo, contando também seus anos de vida. Thereza Salazar fez um levantamento dos sobrenomes mais recorrentes dos moradores para criar um painel com os brasões das famílias. Luciana Costa produziu atividades de encontro

137 Entrevista realizada em 15/02/2007. As declarações posteriores estão na mesma entrevista.

com as famílias e crianças, enquanto Eduardo Verderame criou o Jogo das Possibilidades, uma espécie de jogo da velha feito com a silhueta dos participantes. Mariana Cavalcante criou Sonhos, um trabalho de fotografia que registrava imagens das pessoas da ocupação e descrevia seus projetos de vida e aspirações. Depois, as impressões das fotos foram coladas na porta e nas divisórias dos pequenos apartamentos, em sua maioria criados com madeirite e lona preta.

Embora a produção do evento se configurasse de forma rápida e pouco planejada, os objetivos da exposição ficaram um tanto claros, como legitimar o movimento de moradia na mídia, criar um espaço temporário de produção artística fora do circuito tradicional, buscar um diálogo com os moradores sem qualquer mediação das lideranças do MSTC e iniciar, talvez, uma rede de colaboradores em torno da ocupação. Para Fabiane Borges, do coletivo Catadores de Histórias e uma das idealizadoras do ACMSTC, “o que talvez tenha sido mais explosivo no Prestes Maia foi a profunda alteridade. O encontro com aquela arquitetura física, espacial e subjetiva.”138

Pouquíssimos artistas pareciam preparados para intervir esteticamente em uma situação de pessoas vivendo com seus pertences em caixas, tentando equilibrar a tensão e a resistência cotidiana no prenúncio de serem retiradas a qualquer momento daquele local pelo poder público, com ou sem violência. Muitos moradores se sentiram incomodados com a invasão agressiva da arte em suas vidas privadas. Falavam da cooptação da imagem do movimento pelos participantes do ACMSTC, considerando o

138 Entrevista realizada em 7/03/2007. As declarações posteriores estão na mesma entrevista. fato de que a única reportagem sobre a exposição foi uma nota na coluna social da jornalista Mônica Bergamo no jornal Folha de S. Paulo139 . Segundo Mariana

Cavalcante, “todo mundo que participou do ACMSTC foi embora, mesmo as pessoas que estão ainda hoje. A coisa virou um debate meio desagradável, com algumas insinuações e acusações de pessoas que se aproveitaram do Prestes para aparecer, e também da forma abusiva como tomaram o espaço.”

Artistas e coletivos de arte só voltaram ao Prestes Maia em julho de 2005. Nem todos que participaram do ACMSTC retornaram à ocupação, mais uma vez ameaçada por uma nova reintegração. Uma coalizão batizada de Integração Sem Posse foi ormada por membros dos coletivos Catadores de Histórias, Elefante, Esqueleto Coletivo, Nova Pasta e outros apoiadores, tornando-se mais tarde uma rede multidisciplinar. Um blog desta coalizão, hoje um extenso arquivo virtual de textos, fotos e manifestos sobre a ocupação Prestes Maia, chamadas de encontros, reportagens de jornais e revistas e notícias sobre as ações de despejo de outras ocupações do Centro, começou a ser produzido140 . “Gentrificação” e “luta por moradia” viraram expressões comuns nas discussões, encontros e ações dos coletivos, que começaram a direcionar suas práticas artísticas para questionar a produção do espaço físico, social e econômico da região, além das políticas higienistas da prefeitura.

No início, o Integração Sem Posse referia-se a uma série de encontros, exibição de vídeos, oficinas, performances, shows e outras atividades realizadas aos sábados no subsolo do prédio, transformado em espaço cultural. Intervenções nas paredes e na parte externa da ocupação, como colagem de cartazes, gravuras, lambe-lambes, instalação de placas imobiliárias do projeto SPLAC e Culture Jamming nos outdoors da fachada do

prédio foram realizadas, contribuindo de alguma forma com o vocabulário estético de uma subcultura de Squat Art. Esses encontros procuraram aproximar um pouco mais os artistas dos moradores, enquanto as lideranças pareceram em muitos momentos indiferentes quanto às ações dos coletivos.

139 A nota “Invadir, ocupar, colorir” foi publicada em 14/12/2003. O trecho presentado a seguir mostra o tipo de inserção que a mídia escolheu dar ao evento: “Invadido há um ano por cerca de 2.000 pessoas do MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro), o edifício da Prestes Maia que fica ao lado da Pinacoteca do Estado foi palco, na semana passada, de mais uma ocupação. Cem artistas -entre eles, Regina Silveira e Rochelle Costi – inventaram um tal de ACMSTC (…), e deixaram galerias e ateliês para invadir o prédio com suas intervenções artísticas (…). Para muitos dos moradores, aquela festa estranha com gente esquisita não queria dizer muita coisa. ‘Se trouxessem cesta básica, seria melhor’, dizia Getúlio Veloso, 66 (…).Os artistas ficaram perplexos: na terça, uma moradora foi enxotada com os filhos porque estava, supostamente, fumando maconha.” 140 Endereço do blog: http://integracaosemposse.zip.net.

Os “sábados culturais” no Prestes Maia se conformaram como mais uma estratégia de criação de eventos que pudessem chamar a atenção da mídia sobre a ocupação. Nesse sentido, é inevitável não comparar as ações dos coletivos de arte com uma campanha de marketing ou um trabalho de relações públicas, mesclando operações das indústrias da persuasão com uma transgressão ativista. Operações desse tipo podem tornar-se perigosas e se confundirem com oportunismo ou assistencialismo, e é exatamente isso que se pretende evitar nos termos discursivos e em processos colaborativos. O problema de cair na falha de uma arte política de representação também precisa ser relevado, quando as práticas sociais são representadas apenas como uma questão de idéias ou ideais icônicos141. Além disso, o que significa ver as urgências de 468 famílias pobres e sem moradia nas imagens produzidas em fotografias e vídeos pelos artistas? Estetização da pobreza? Expropriação disfarçada? Mistura de melancolia com distanciamento? A escritora Susan Sontag nos oferece uma provocação polêmica, mas necessária sobre estas questões, ao falar das imagens que focam os destituídos de poder reduzidos à sua impotência.

É significativo que os destituídos de poder não sejam designados nas legendas. Um retrato que se exime de designar seu tema torna-se cúmplice, ainda que inadvertidamente, do culto da celebridade que inflamou um apetite insaciável pelo tipo oposto de fotografia: assegurar só aos famosos a menção de seus nomes rebaixa os demais a exemplos representativos de suas ocupações, de suas etnias, de suas aflições (…). Fazer o sofrimento avultar, globalizá-lo, pode incitar as pessoas a sentir que deveriam “importar-se” mais.

No texto “Notas sobre o coletivismo artístico no Brasil” (2005), Ricardo Rosas adverte que uma ação como a exposição ACMSTC corre alguns riscos não pelo ato, mas por sua ação simbólica, na medida em que pode passar a imagem de paternalismo e solidariedade. “Talvez falte aqui, o que não desmerece em absoluto a idéia dos artistas de abordar esses espaços de cruel exclusão, mais aprofundamento conceitual para planejar estratégias de visibilidade -se é o que se pretende -ou mesmo de ação

141 FOSTER, Hal. Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulistana,

1996. p. 205.

142 SONTAG, Susan. Diante da Dor dos Outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. pp. 67 e 68.

simbólica, seja para os que estão lá dentro, seja para os que estão fora.”143 Por outro lado, em algum momento da trajetória dos coletivos de São Paulo, modos de conceitualismo insurgente seriam utilizados como armas e barricadas em um violento despejo de um prédio no Centro.

O despejo das 79 famílias da ocupação Plínio Ramos144 foi uma experiência em que artistas e coletivos tiveram de lidar com uma situação real de confronto. Após este episódio, muitos se posicionaram mais criticamente perante suas práticas artísticas, acentuando, em alguns casos, o seu ativismo no Centro. Na madrugada de 16 de agosto de 2005, coletivos, apoiadores, estudantes e moradores de outras ocupações se reuniram na frente do prédio de número 112 da Rua Plínio Ramos. Para receber a mídia, a Força Tática e um oficial de justiça com a ordem de reintegração de posse às 8h, os coletivos passaram a noite produzindo algumas intervenções no local.

Grupos de pessoas que ficaram no prédio permaneceram por lá após a soldagem das portas pelo MMRC. Lá dentro, o grupo Catadores de Histórias registrou imagens da situação interna e dos moradores. No dia anterior, o Grupo Risco pintou com as crianças da ocupação faixas com a palavra “JUSTIÇA”, sendo colocada na porta, e a frase

“DIREITO À CIDADE”, instalada verticalmente no prédio. As faixas foram reforçadas com uma série de intervenções simbólicas. Cartazes feitos pelo coletivo Dragão de Gravura com a frase “INTEGRAÇÃO SEM POSSE X REINTEGRAÇÃO DE POSSE” e lambe-lambes produzidos pelo BijaRi definindo a palavra “GENTRIFICAÇÃO” foram colados em postes, paredes e na porta vedada da ocupação. Um enorme desenho de um executivo com uma pasta, produzido pelo Esqueleto Coletivo, foi instalado no muro da rua. Com o desenho, o coletivo acrescentou a frase “HOMENS IGNORANDO”, bem no local onde a Força Tática se concentrou para realizar o despejo. Como barricadas, as placas imobiliárias do coletivo EIA foram espalhadas na

rua, uma delas com a imagem de um cartaz do Grupo de Arte Callejero onde se via a imagem de uma mulher com um alvo. O coletivo Elefante, um grupo que mescla em suas práticas situações poéticas acrescidas de sugestões linguísticas, se apropriou de placas imobiliárias pintadas de branco e escreveu, em cada uma delas, letras em vermelho que juntas formavam a palavra “DIGNIDADE”. Nesses casos, as intervenções funcionariam como obstáculos físicos que dificultassem a posterior entrada da polícia

143 ROSAS, Ricardo. “Notas sobre o coletivismo artístico no Brasil”, 14/08/2005. Disponível em: <http://www.rizoma.net/interna.php?id=229&secao=artefato&gt;. Acesso em: 10 fev. 2006.As famílias ocuparam o prédio em março de 2003 através de uma ação do MMRC.

na ocupação, mas também como representação direta do movimento de moradia e uma mídia tática pronta a ser registrada por câmeras, fotografias e aparatos da imprensa, multiplicando as imagens de luta e de exclusão nos noticiários televisivos e pela internet. Nesse aspecto retórico, uma das funções sociais destas intervenções artísticas seria a de “cristalizar uma imagem ou uma resposta a um quadro social confuso, evidenciando seus contornos.”145

Pela manhã, moradores e apoiadores que ficaram fora do prédio se organizaram em um sit-in. Sem o acordo entre o movimento e o poder público, os policiais se aproximaram para executar a reintegração de posse.

Ação da Força Tática no dia da reintegração de posse da ocupação Plínio Ramos (16 de agosto de 2005). A Força Tática recebeu os manifestantes com gás lacrimogêneo e balas de borracha, atingindo idosos, mulheres e crianças. Bombas de efeito moral foram usadas para dispersar as pessoas, enquanto o barulho produzido no local chegava até àqueles que permaneceram dentro do prédio. Para entrar na ocupação, a polícia precisou destrinchar os lambe-lambes, cartazes, faixas e placas, até chegar nas portas soldadas. Ironicamente, um policial utilizou a placa imobiliária com o alvo do Grupo de Arte Callejero para se proteger de um suposto ataque146. Conforme o depoimento de Mariana Cavalcante sobre a ação no dia do despejo,

145 ROSLER, Martha. “Fragments of a metropolitan viewpoint”, in WALLIS, Brian (ed.). (ed.). If You Lived Here. The City in Art, Theory and Social Activism. A project by Martha Rosler. Seattle: Bay Press, 1991. 146

O vídeo “Plínio Ramos, 82” (2005), dirigido por Chico Linares e Melina Anthis, registra todo o processo do despejo da ocupação. Parte das descrições apresentadas aqui sobre as ações e as intervenções coletivas foram baseadas nas imagens do vídeo e em um texto sobre este episódio a polícia já chegou jogando gás na cara de todo mundo. Enquanto isso, a molecada que estava no telhado jogou uma tábua de madeira, que caiu na cabeça de um policial, e daí eles começaram a atirar bala de borracha. Foi uma guerra, eu estava lá dentro sem saber o que estava acontecendo. Estouraram o nariz de uma das lideranças. Quando arrombaram a porta, as mulheres saíram e os homens ficaram no andar debaixo, onde era uma garagem. Quem a polícia percebeu que era apoio e universitário, foi deixado perto da porta. A molecada e os homens da ocupação foram colocados no fundo e bateram muito neles. Bateram mesmo… A Fabi [Fabiane Borges] foi a única mulher que ficou no paredão porque ela desceu da escada toda vendada e a polícia encanou com ela. A polícia pegou câmera de foto e de vídeo. Foi todo mundo parar na delegacia.

Intervenções na ocupação Plínio Ramos. Lambe-lambes sobre gentrificação criados pelo BijaRi, Homens Ignorando, do Esqueleto Coletivo, e Dignidade, do Elefante, instalado novamente depois da desocupação. As imagens geradas do despejo circularam pela mídia brasileira e no exterior. Após a reintegração de posse, os moradores da ocupação acamparam na rua. Na semana

seguinte, vestidos de preto, levando um caixão, faixas e instrumentos musicais, os exmoradores da Plínio Ramos realizaram um cortejo até a Secretaria da Habitação de São Paulo simbolizando a morte da ocupação, mas não foram recebidos pelos funcionários147 . Performances coletivas com artistas e moradores de ocupações começaram a acontecer com maior intensidade. A estratégia dos escraches argentinos foi usada e adaptada em uma outra ação quando artistas, sem-teto e o Fórum Centro

Vivo resolveram constranger o subprefeito Andrea Matarazzo na frente de sua casa, no bairro do Morumbi148 . Apropriando-se do slogan de uma famosa propaganda imobiliária com a frase “felicidade é morar aqui”, os manifestantes, vestidos com roupas de praia, bóias e outros adereços, montaram um “piscinão” na rua do subprefeito, em alusão ao projeto de destruição de uma favela para a construção de um piscinão. O convite do escrache carnavalesco era singular: “se a gente não pode morar no Centro, vamos morar no Morumbi!” De volta à ocupação Prestes Maia, a biblioteca comunitária criada no subsolo da ocupação por iniciativa de um dos moradores, seu Severino, ganhava atenção e empatia da mídia nacional e internacional, transformando-a em um símbolo de resistência cultural. Centenas de doações foram articuladas e a biblioteca chegou a um número aproximado de 16 mil livros, segundo seu Severino.

Tais encontros participativos entre coletivos de arte e o movimento de moradia de São Paulo geraram um compartilhamento útil de táticas e de apropriações de linguagens que denunciam, ao seu modo, as contradições do sistema e afirmam a consolidação do poder popular. Este deveria ser um tema de reflexão e inquietação para artistas-ativistas que buscam formar coalizões com movimentos. Mas, os próprios movimentos sociais já não estão produzindo de forma efetiva suas intervenções simbólicas, protestos e passeatas? Será que eles realmente precisam das táticas oferecidas pelos artistas para conseguir visibilidade? E se precisam, não seria o caso de retomar aqui a figura do “autor como produtor”, de Walter Benjamin, solidário a outros produtores e ao proletariado (movimento), dispondo-se a socializar a produção de seus meios intelectuais/estéticos para transformar consumidores em colaboradores?

Se os coletivos de arte querem produzir suas manifestações estéticas neste campo então devem, primeiro, indicar caminhos mais claros de seus processos de

147 Ocorrido em 24/08/2005.

148 Ocorrido em 29/10/2005.

trabalho e de colaboração, de sua politização e alteridade. Os grupos precisam se questionar quanto à sua fidelização a um evento. Como descreve Alain Badiou, a fidelização “existe aquém de si mesma; ela inexiste além de si mesma (…). O famoso

‘não somos nada, sejamos tudo’, se determinarmos o seu conceito, diz respeito a este ponto. Significa em última instancia: sejamos fiéis ao evento que somos.”149 Seria adequado considerar um trecho do depoimento de Cibele Lucena com algumas de suas reflexões sobre as relações entre os coletivos de arte e a ocupação Prestes Maia:

É porque tem essa situação confusa, do lugar onde você e o outro estão e de como construir junto. Tenho a sensação de que no Prestes faltou uma coisa mais debruçada, no sentido de organizar e de sistematizar a própria experiência. Ela foi muito experimental, sentia muita falta de organização, que às vezes se perdia e se confundia. Chegava uma hora que você não sabia mais… Estavam os artistas, os moradores e tinha uma hora que era uma confusão geral. Você não sabia mais o que estava fazendo ali, se a gente tinha de levar símbolo ou um pacote de leite. Sabe quando começa a virar uma confusão de lugares? Ou o que significava ter um espaço na mídia? O que estava acontecendo com a biblioteca, com o seu Severino e isso tudo aparecendo na Folha? Era muita gente envolvida…

A fluidez de práticas transversais são bem-vindas, embora se confirme pouca ou nenhuma preocupação dos coletivos de São Paulo em discutir exatamente o motivo de sua fidelização à luta por moradia no Centro, a fim de mesclar-se a um processo contínuo de educação experiencial, sem expropriação ou cooptação. Igualmente, há uma rara vontade de alguns grupos e indivíduos em organizar e apresentar os resultados de seus registros de ação para uma comunidade que não seja apenas a do circuito de arte. É nesse compromisso ou omissão de retornos e diálogos que volto ao início deste texto, quando me perguntei sobre as urgências dos coletivos de São Paulo. A última grande intervenção dos coletivos na ocupação Prestes Maia, a exposição Território São Paulo

(2006), pode esclarecer melhor essas indagações.

Convidados pela 9ª Bienal de Havana a participar da mostra com uma sala exclusiva sobre a experiência em São Paulo, os coletivos A Revolução Não Será Televisionada, BijaRi, Catadores de Histórias, Cia. Cachorra, C.O.B.A.I.A., Contra

BADIOU, Alain. O Ser e o Evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. p. 191.

Filé, Espaço Coringa, Elefante, Esqueleto Coletivo, Frente 3 de Fevereiro, Nova Pasta e Tranca RUa150 tiveram de resolver uma série de questões logísticas, como a falta de apoio financeiro com passagens e as dificuldades em mandar seus trabalhos para Cuba.

Por conta da exposição, desentendimentos entre os participantes resultaram em desgastes e brigas. A decisão tomada foi a de que os coletivos mandariam seus trabalhos para Cuba via fax. Nenhum coletivo mandou trabalhos e a sala dedicada a São Paulo permaneceu totalmente vazia durante a bienal. Os grupos decidiram então criar simultaneamente à exposição em Cuba uma sala especial da Bienal de Havana no subsolo da ocupação Prestes Maia, nomeada de Território São Paulo.

A vernissage da exposição Território São Paulo, em 27 de março de 2006, foi uma das mais bonitas que eu já vi. A aridez do conflito foi tomada temporariamente pela poética dos cartazes, desenhos, fotografias, instalações, vídeos e música. De fora, a bandeira “ZUMBI SOMOS NÓS”, da Frente 3 de Fevereiro, representava ainda a ocupação como um quilombo. Na entrada, um capacho escrito “DIGNIDADE” foi deixado pelo coletivo Elefante. No porão, o EIA espalhou cartazes sobre o direito à moradia no Centro e espantalhos, promovendo depois um baile com as crianças. O Esqueleto Coletivo fez suas inserções com lambe-lambes, um deles com a imagem de um homem voador sobre a cidade, um outro com a foto de policiais cercados por urubus e acompanhados da frase “VIDA X PROPRIEDADE”. O Espaço Coringa ocupou as paredes de cartazes com frases e a iconografia popular sobre a situação das 468 famílias. BijaRi levou balões de cor laranja com a palavra “LAR”, e também placas, carrinhos e estandartes de seu projeto Arquitetura da resistência, retomando a informalidade estética das gambiarras e suportes usados pelos camelôs. A arquitetura vernacular também apareceu na instalação da Cia. Cachorra, que construiu casinhas

com placas imobiliárias, inspiradas na história de um morador de rua151. No palco do subsolo, o grupo colocou um display de uma foto com uma de suas integrantes em pose lúdica, segurando uma focinheira e um escudo com a palavra “DELICADEZA”. A ocupação foi tomada pelas crianças, moradores e convidados que deram a vernissage um caráter festivo, com direito a carnaval, malabarismos, capoeira e parangolés.

Um texto sobre a participação dos coletivos em Cuba está publicado em:

http://www.bienalhabana.cult.cu/protagonicas/proyectos/proyecto.php?idb=9&&idpy=23. 151 Sobre este trabalho, ver a entrevista com Fabiana Prado (Cia. Cachorra) no anexo desta dissertação.

Sem a iminência de um novo despejo e o desgaste por conta da Bienal de Havana, os coletivos se dispersaram logo após a exposição Território São Paulo.

Muitos não voltaram à ocupação. Alguns integrantes destes grupos permaneceram como apoiadores no Prestes, acompanhando a movimentação de outras ocupações e as lutas por moradia no Centro. Em junho de 2007, as portas da ocupação Prestes Maia foram finalmente lacradas pelo poder público, sem antes de uma série de reuniões emergenciais entre artistas, apoiadores, moradores e lideranças do movimento.

Certamente, algumas conclusões críticas sobre a experiência dos coletivos de arte com os movimentos sem-teto do Centro devem ser notadas. Em primeiro lugar, é correto considerar que as urgências são diferentes. Artistas podem muito bem usar e instrumentalizar uma comunidade ou um movimento de moradia para promover suas marcas coletivas, e depois lançá-las no circuito que lhes convêm. Produtos artísticos têm um poder simbólico, “um poder que pode ser posto a serviço da dominação ou da emancipação e, neste sentido, um campo ideológico com repercussões na vida cotidiana.”152 Um projeto artístico inconcluso ou pouco potente também pode ser facilmente arremessado dentro de uma comunidade de modo descontextualizado, como se esta operação legitimasse a prática de muitos grupos.

As consequências negativas deste processo administrativo de gerenciamento de “produtos artísticos” pelos coletivos podem criar, erroneamente, formas de paternalismo bem-intencionado e objetivos nem sempre comuns. Como já foi dito anteriormente no primeiro capítulo, quando a própria voz da colaboração com a comunidade não é ouvida ou abafada, o “outro” transforma-se em “coadjuvante” e o coletivo passa a valorizar apenas a sua própria agenda de interesses, êxitos e méritos. Nesse sentido, qualquer intenção para o que Suzi Gablik chama de “estética conectiva” – quando um processo de diálogo e de invenção estética em conjunto cria um fluxo no qual não existe uma distância de observação e um antagonismo autoritário, mas a reciprocidade de uma atividade em um ecossistema153 – parece ser descartada e abandonada.

A experiência dos coletivos na ocupação Prestes Maia trouxe momentos muito importantes e esclarecedores a todos. Antes de tudo, foi um aprendizado que precisa ser multiplicado pelos próprios participantes. Mesmo com a ampliação eventual de redes colaborativas e de apoio, as estratégias de autonomia artística e de geração de um espaço comum não foram desenvolvidas em sua totalidade, nem mesmo representaram uma alternativa concreta à segregação espacial e aos processos gentrificação no Centro de São Paulo. No geral, o coletivismo artístico no Brasil ainda não constituiu firmemente na sua abrangência enredada as possibilidades radicais de um movimento auto-organizado. Por isso, o trabalho de pesquisa e de investigação histórica junto aos grupos, a escrita, a experimentação e o compartilhamento de manifestos e programas são tarefas fundamentais para a consolidação do potencial político de novas ações de resistência e de mudança.

152 BOURDIEU, Pierre e HAACKE, Hans. Livre-troca: diálogos entre ciência e arte. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 16. 153 GABLIK, Suzi. “Connective aesthetics: art after individualism”, in LACY, Suzanne (ed.). Mapping

the Terrain. New Genre Public Art. Seattle: Bay Press, 1995. p. 86.

Deixe um comentário