TECNOXAMANISMO, TECNOMAGIA, RUIDOCRACIA, Fabiane Borges

TECNOXAMANISMO, TECNOMAGIA, RUIDOCRACIA E OUTRAS IDIOSSINCRASIAS

por Fabiane Borges

Eu ia naqueles retiros durante os carnavais. Meio do mato, nenhuma droga. Todos viciados nos “dons do espirito santo”: sabedoria, conhecimento, fé, cura, maravilhas, profecia, discernimento, variedade de línguas, interpretação de línguas, e também sonhos, interpretação de sonhos e arrebatamento.

Um desses retiros “pegou fogo”, como se diz na linguagem dos pentecostais, uma  experiência sinestésica intensa, como se todos os dons do espírito santo tivessem sido convocados. O mundo terminaria ali, e seríamos levados diretamente para o paraíso. Dois jovens ficaram arrebatados por cerca de 2 dias. Falava-se a língua dos anjos durante madrugadas inteiras, em total concentração – hipnose. Meu dom era discernimento. Eu quase sentia a materialidade das potestades, arcanjos, demônios de várias escalas em luta pela nossa alma. Eu cuidava das vidas. Passava água na cabeça dos arrebatados, que balbuciavam, dava sopa nas suas bocas, tirava gente do rio, salvei pelo menos dois que ja estavam no fundo sem saber nadar. Uns cantavam em outras línguas, outros interpretavam. O português (língua comum) como algo secundário. Todo mundo cozinhando junto, tomando banho no rio, chorando, em estado de louvor. Adoração é uma forma de se dar. Os “retiros espirituais”  foi o que sobrou pra mim de toda experiência com o pentecostalismo, antes da sua dominação pelos grandes Reinos de Deus. A imagem dos pentecostais desgovernados nesse encontro nada racionalista, entregue, dominado por um fanatismo abstrato, imaterial e nada político se tornou uma referência para muitos de nós que participamos.

Quando abandonei as crenças e práticas da religião, caí num buraco gigante, e por anos fiquei me sentindo vazia, o espaço demorou a ser preenchido, eu tentava sosinha chegar aos estados de graça que conhecera, mas parecia que tinha sido abandonada. Era uma dor física, algo no estômago, muitos suspiros. Talvez o que diferencia a perda da fé do estado de luto, é que no luto a dor  tem a cara de quem morreu, na perda da fé, o luto é por si mesmo. Quem se perde é a gente mesmo, como uma morte em vida. O desencanto têm seus próprios percursos, se aproxima do niilismo, uma vontade de nada, de servir pra nada, ou uma sensação de que tudo que se faz é em vão. Um dia discutindo esse episódio com Suely Rolnik, em Águas Belas no Ceará, ela disse, você perdeu a transcendência e caiu na imanência, como nesse deserto de areia branca, eu dizia que não, eu cai num vazio sem volta, num abismo existencial.  Tudo era pesado e disforme. A graça que era meu estado habitual anteriormente, que parece ser um óleo tonificante que traz um grau elevado de prazer e sentido para as coisas, se transformou em secura, em vida dura, em uma corporalidade extrema.

Mais tarde, comecei produzir alguns eventos/encontros com essa idéia de ritual ou celebração, utilizando um arsenal de práticas de todo tipo, religiosas, performáticas, psicológicas, atualizando inclusive algumas técnicas pentecostais, como a produção de ruídos (lingua dos anjos), ou ainda  o tranze das danças coletivas, entre outras. Essas práticas eram pensadas a partir de três pontos: subjetividade – apropriação – resultado estético. Ruidocracia, tecnoxamanismo, ritual de intervenção e celebração, cada um dos eventos eram nomeados conforme os interesses do momento, pondo em evidência suas próprias redes, idiossincrasias e acertos. Estava utilizando como amparo técnico pedais de guitarra, softwares, microfones, projetores trazendo para a cena todo um aparato multimídico a fim de criar  espaços ficcionais, ou ainda, realidades aumentadas.

Como as práticas operavam no intermédio entre saúde mental, trabalho corporal e produção multimídia, a questão da “apropriação profunda” ou apropriação da matéria começou urgir de modo que passei a frequentar alguns workshops de decomposição de hardware, onde se extraem todo tipo de material, metal, ouro, silício, prata, e transformava-se a placa mãe do hardware em um laboratório de energia, com utilização de técnicas medievais de alquimia. Bebia-se o ouro, explorava-se as capacidades sonoras do equipamento sendo desestruturado e readaptado. Se extraía do objeto pronto, como um computador, seus elementos primários, transformando em linguagem todo esse processo, seja linguagem sonora, ou qualquer outro tipo de codificação. Para o final desses encontros previa-se a comemoração, o ritual e o barulho (o som, o código). O ritual barulho é a comemoração –  pode ser festiva, contemplativa ou ainda cerimoniosa. Acontecem depois dos workshops, onde as produções são estetizadas, têm-se as perfomances, os áudios, a comemoração do trabalho feito e sua demonstração para mais gente (público).

Vindo do mundo da psicologia tive dificuldades e por vezes total paralizia em aproximar o ambiente do êxtase ou do ritual a da apropriação da máquina ou da matéria. Em longas conversas nas redes ou pessoalmente, eu tentava esclarecer se esses pontos eram fundamentalmente distintos, ou se tinham alguma comunicação direta. As perguntas eram mais ou menos essas: como aproximar a experiência do êxtase com a experiência da apropriação matérica? A utilização de equipamentos multimídicos para os processos imersivos produzem alguma relevância cultural, ou é trabalho somente de efeitos? (pensando aqui a utilização dos softwares multimídicos como um modo superficial que talvez ainda não tangencie a experiência de apropriação profunda – hardware/matéria). Qual o papel do construtor ou do artesão nas experiências ritualísticas e subjetivas? Que corpos eram esses que deveriam juntar-se sem perder de vista nenhuma das três instâncias que me interessavam: a apropriação de um certo conhecimento (máquina – matéria), a experiência subjetiva em nivel profundo (a entrega, intensificação de presença), a codificação em uma linguagem estética (intervenção, fotonovela, performance, video, instalação ambiental e sonora)?

As oficinas que estava fazendo com Camila Mello e Phil Jones na Europa denominadas tecnoxamanismo, entre outros nomes, buscava conectar ambos processos. Do nosso lado, tínhamos como função explorar os processos ritualísticos, somados as biografias das pessoas. Conseguíamos constituir um território de entrega e de invenção de corpos e sons, que nos rituais de apropriação tecnológica ainda não tinha, pelo menos os que presenciei. A “apropriação profunda” que a gente produzia se dava em um nível muito mais subjetivo, que ia da intimidade ao êxtase, do espaço privado ao espaço público, da cegueira ao carnaval de rua. Mas a condição de “construcão”, da relação entre subjetividade e máquina ainda não era feita. No caso do “ritual barulho”  o investimento na produção de rituais se davam, mas com menos vigor do que o investimento na máquina.  Comecei a entender que a junção de ambos processos poderiam produzir algo juntos, que sozinhos não davam conta.

Nossas propostas não produziam um estado de apropriação matérica, mas se sustentavam como ritual e produção estética.  Dá-se para as pessoas a possibilidade de criar estados perceptivos novos, sinestesia, ao mesmo tempo que traz a tona idéias de celebração coletiva, através de cortejos, procissões, passeatas, retomada do espaço público como espaço de exposição, delírio e criação..

Nesse sentido, é um trabalho político. Experimenta-se um novo formato de criar ambiente e realidade (isso não é uma metáfora). Ao criar o ambiente ruidocrático tenta-se inventar respostas em nível micropolítico, a toda a produção política das revoluções recentes das praças, das ruas, no oriente médio, europa, entre outras. A ruidocracia é de algum modo, a provocação de uma situação de amplificação onde emite-se todo tipo de história, os desejos vem à tona, vem á tona todo tipo de utopia, criando uma zona de honestidade, que necessariamente é ruidosa, dada as diferentes percepções e experiências com o mundo. Nessa escala experimental e aparentemente metafórica, produz-se a sensação política, revelando as diferenças e a vontade de universalidade como ruído ambiental. Na praça Syntagma em Atenas tudo isso se evidencia. A praça é dividida em dois movimentos estruturais maiores e outros segimentos. De um lado os que lutam contra o governo, evocam gritos de guerra, fazem propostas políticas para um novo governo. Do outro lado grupos redes de movimentos sociais, reunem-se todos os dias para discutir questões em um palanque, onde todos tem direito a falar durante um minuto e meio, sobre propostas coletivas, sem interesse no Estado ou de estruturar um movimento social único. O ambiente é muito ruidoso, e não se tem mecanismos práticos para criar convergencias, a não ser pelas demoradas assembléias ou ainda as bandas de música. É aqui que me debruço a pensar nos mecanismos que utilizam: presença, discurso e festa.

Fazer política geral com a ruidocracia, salvaguardando direitos conquistados, ao mesmo tempo que se propõe uma experiência de abertura perceptiva, onde a palavra de cada um perde a predominância ao mesmo tempo que é amplificada, criando uma situação de risco dos discursos, que ao serem amplificados e ecoados não dão sinais somente de empoderamento, mas também de risco, já que por momentos ganham a dimensão de única realidade. É uma megalomania. É uma forma de fazer o participante tangenciar o papel de verdade, ou ainda de imperador, para logo ser submerso em um caos de ordens e posições ideológicas misturadas à biografias e crenças, onde todo discurso varia entre compreensibilidade e incomprensibilidade, criando estados ora harmônicos ora desastrosos. Mas essa metodologia criaria alguma convergencia nas ações, e ainda melhoraria a situação de crise vivido na Grécia? Isso vale também para outras paisagens rebeladas.

Evidentemente aqui se constitui um problema de relação entre humano e máquina. Como depender de um sistema de pedais, de um software ou de um dj que no final das contas vai determinar onde entra cada uma das vozes, agigantando ou enfraquecendo sinais? Essa máquina pode ser um software ou um sistema governamental.

É nesse sentido que a apropriação hardware/matéria se torna um elemento fundamental. O construtor, os diferentes construtores são os criadores dos sistemas operacionais (materiais, imateriais, etc). Na medida em que se cria essa dimensão de construção nas pessoas, sua crença no sistema diminui em troca ganha-se a dimensão da invenção de sistemas, a fé no processo.

Ao transformar um hardware de computador em um laboratório de pesquisa, propôe-se pelo menos três tipos de movimentos: a apropriação da máquina, a desmistificação da ciência, o empoderamento do construtor. Ao fazer isso num contexto de magia, ritual, xamanismo propôe-se mais três movimentos: o compartilhamento, a interdependência, a invenção de mundo. Intensificando os dois processos juntos, cria-se a dimensão de experiência profunda entre humano, máquina e natureza. Enfim, poderia dizer que isso tudo é um delírio de criação de outros mundos possíveis.

Esse texto vai ser continuado – essa é a primeira parte, e o prazo terminou há mais de 30 dias.

Fabiane Borges – Lesbos, Grécia – 20/06/2011

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